IBAMA DIZ: Aparar as penas é crime!
Esse é um assunto com tantas camadas……
Estava eu assistindo essa grande tragedia no Rio Grande do Sul, se por um lado as imagens duras de tantos animais sofrendo doía bastante, por outro, tanta comoção, tantos grupos de resgate, tanta gente se organizando no salvamento de animais nos deu além de tudo esperança em uma humanidade melhor.
Ao longo da história é sabido que em grandes tragedias, os animais são deixados de lado, todo foco e trabalho é voltado nas vidas humanas, e a tragedia fica maior.
Não é o caso de debater o valor, ou escala de valor de cada vida, toda vida importa, e quando um grupo expressivo de pessoas não criam uma hierarquia de valoração da vida, concluímos que estamos evoluindo, moral e espiritualmente, e como humanidade.
Bem, voltando a tragedia, ao assistir incontáveis vídeos de cachorros e gatos sendo socorridos, em um certo ponto, comecei me questionar onde estariam as aves pet, passarinhos e psitaciformes, em sua maioria criados em gaiolas, viveiros e infelizmente, alguns ainda em poleiros com correntes.
Ouvi inúmeros relatos de cachorros achados presos em suas correntes, sem a mínima chance de tentar se salvar, e o incomodo vinha, o pensamento voltava: Será que as pessoas lembraram de abrir as gaiolas, ao menos para que eles tivessem alguma chance? E se abriram, será que suas asas estavam inteiras? E se estivessem, vi aves que depois de décadas presas, não sabiam que podiam voar…. triste tragedia!
Depois de trancar em gaiolas ou viveiros, aparar as penas das asas é a forma mais comum utilizada por tutores para evitar que a ave vá embora, mas também é o modo mais eficiente de lhe tirar liberdade, autonomia e principalmente autodefesa.
Quantas aves pets ficaram presas em casa, trancadas em gaiolas nessa tragedia?
Quantas se afogaram por não saber voar?
Quantas podiam ter voado para um lugar alto se tivessem as asas e capacidade de voo integras?
Perguntas e perguntas que ecoam, quantas????
Aparar as penas é crime ou não?
Durante muito tempo o aparo de penas não foi considerado uma mutilação, pelo menos, não era considerado pela população, pelos criadores em geral, nesse meio entendia-se como mutilação uma cirurgia feita na asa que impossibilita o voo de forma definitiva.
Nestes 10 anos de criação, falar, ou ouvir falar sobre aparo de penas era considerado algo corriqueiro e sem consequências, raras vezes ouvi relato de alguém que foi multado por maus tratos devido o aparo penas das asas.
Apesar disso, para quem adotava uma ave, ou seja, ganhava a tutela de uma ave do órgão, recebia orientação explicita que era proibido aparar as penas das asas, logo entendemos que esse entendimento do órgão já vem de bom tempo, tendo flexibilidade na hora de fiscalização por alguns que não levavam em consideração.
O IBAMA, este ano emitiu uma nota técnica de número 08/2024 enquadrando claramente o aparo de asas como crime de maus tratos. Em suas nove páginas de documento o órgão fundamenta de forma técnica sua decisão. Destaco aqui alguns trechos:
“O Decreto nº 6.514/08, no Artigo 29, considera infração contra a fauna: “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”.
O termo crueldade pode ser entendido como qualquer ato que, intencionalmente ou por negligência, esteja associado a fazer o mal, atormentar ou prejudicar. O conceito de abuso diz respeito ao uso incorreto, despropositado, indevido e demasiado (Hammerschmidt e Molento, 2017).
Tecnicamente, para entender o que são maus-tratos é necessário compreender a estreita relação entre maus-tratos e bem-estar.”
O documento segue fundamentando sua decisão baseando-se nos conceitos científicos de bem-estar animal, diga-se as cinco liberdades, que evoluíram para o novo modelo chamado dos Cinco Domínios, que são: Nutrição, saúde, ambiente, comportamento, estado mental. Destaco este trecho:
“Assim, se uma ave tem sua capacidade de voo restringida por conta do corte de penas da sua asa, por exemplo, isso a impedirá de expressar seu comportamento natural de locomoção e exploração do ambiente, afetando os domínios 3 e 4, o que afetará seu estado emocional (domínio 5).
A verdade é que muitas aves em cativeiro com restrição de voo, seja pelo tamanho da gaiola ou por corte das penas das asas, passam a expressar comportamentos anormais e estereotipados, o que é indicativo de baixo nível de bem-estar. Nesse caso, tem-se uma situação de maus-tratos, pois conforme Hammerschmidt e Molento (2017), maus-tratos podem ser definidos como as ações diretas ou indiretas caracterizadas por negligência, agressão ou qualquer outra forma de ameaça ao bem-estar de um indivíduo. Logo, o ato de cortar as penas da asa de um psitacídeo para restringir seu voo é um ato que impede que o animal apresente nível adequado de bem-estar.’
No discorrer do texto ele questiona, sobre a autonomia, vulgo liberdade de escolha sobre sua própria vida com a pergunta:
“Uma pergunta interessante a se fazer é: o animal se comporta como ele escolheria se comportar? (Fraser, 2012).”
A análise segue pontuando as questões referentes aos sentimentos, estes inerentes a condição de bem-estar dos seres vivos que são sencientes. Destaco:
“Portanto, os estados afetivos que motivam o comportamento abrangem sintomas de frustração, que surgem quando os animais estão altamente motivados a executar um comportamento, mas ele se torna impossível de executar nas circunstâncias existentes, como é o caso de aves que não conseguem voar por terem penas de suas asas cortadas. “
Outro aspecto apontado no relatório faz menção aos prejuízos a saúde física da ave que tem as asas aparadas, destaco:
“A saúde física de psitacídeos pode ser afetada negativamente com o corte das penas das asas, favorecendo sedentarismo e obesidade. Quando a ave é impedida de voar, perde seu principal meio de locomoção e de atividade física, o que contribui para o sedentarismo, sem gastar a energia acumulada da dieta e passando a maior parte do tempo descansando e dormindo. “
O documento também aponta os riscos, destacamos:
“Além do perigo de ser realizado de qualquer jeito, o corte unilateral ou o corte drástico das penas da asa pode causar aterrissagens desequilibradas, provocando fraturas de penas (Grespan e Raso, 2014). Conforme os autores, o corte unilateral pode desequilibrar a ave nas tentativas de voo, a tal ponto que ela não consegue estabilizar o pouso, caindo em espiral, aumentando o risco de lesões por traumatismo.”
“Na fratura de penas, o folículo pode ser prejudicado pelas lesões repetitivas na pena, resultando em distrofia permanente da pena com sérias consequências para a qualidade de voo e integridade física da ave (Grespan e Raso, 2014). Ainda que o corte bilateral seja realizado por profissional, e ainda que esse seja menos eficiente em restringir a capacidade de voo da ave, também a impede de expressar uma das suas adaptações básicas.”
A nota técnica também discorre sobre a função de cada pena no corpo da ave, evidenciando que longe da crença popular que as penas servem para aquecer e embelezar, elas têm função e importância para a saúde e bem-estar da ave.
Destacamos também os aspectos emocionais, destaque:
“Ao ser privado de voar, o psitacídeo, naturalmente apto a realizar longos voos, seja em deslocamentos estacionais na procura de alimento ou para alcançar um local de banho (Sick,1997), é privado de realizar seu comportamento natural, aumentando o tempo ocioso e a ansiedade da ave, o que pode ser precursor de problemas emocionais como a síndrome do arrancamento de penas (Jenkins, 2001 apud Fagundes, 2013), ansiedade da separação e estereotipias motoras. Laceração peitoral, fraturas de canhões de penas (Grespan e Raso, 2014), pisões, esmagamento e predação também são consequências de aves com restrição de voo.”
“Se o animal não puder exercer suas adaptações básicas, os processos integrativos fundamentais no sistema nervoso central podem deixar de ter um desenvolvimento normal (Fraser, 20112). Uma das importâncias do treinamento regular de voo está no fato de que ele pode reduzir os níveis de dano oxidativo pós-exercício em aves em cativeiro (Larcombe et al., 2010), sem contar que psitacídeos criados em gaiola tendem a comer demais e tornarem-se obesos (Harcourt-Brown, 2010). Por isso, a importância da dieta equilibrada e da possibilidade de se exercitar. “
“Foi identificado vazio ocupacional de animais mantidos em cativeiro, os quais não podiam fazer nada para si próprios, sentindo-se entediados. E sanar isso não dependia apenas de fornecer ambiente mais complexo, mas possibilidades para execução de comportamentos e interação ativa com o ambiente (Fraser, 2012). “
Diferente do preconizado anteriormente referente a gaiolas e viveiros, que dizia que a gaiola deveria ter pelo menos duas vezes o tamanho da abertura da asa da ave, nesta nota lê-se:
“As gaiolas e viveiros de psitacídeos criados como animais de estimação devem ser grandes o suficiente para os animais voarem, poleiros devem estar disponíveis em diferentes tamanhos e materiais, deve haver ambiente favorável para forrageamento, brincadeiras e outras interações sociais (Harcourt-Brown, 2010).”
O documento segue com outras considerações e finaliza com a seguinte conclusão:
Fundamentando-se na discussão acima sobre o que é bem-estar animal e sua relação com maus-tratos e considerando as razões expostas sobre a importância das características adaptativas de aves, especialmente psitacídeos, e considerando que a Lei de Crimes Ambientais abarca as variadas formas de maus-tratos a animais, o corte de penas de asas de psitacídeos é entendido como maus-tratos. Portanto, conforme o artigo 32 da Lei nº 9.605/98 e o artigo 29 do Decreto nº 6.514/08, o ato é crime e infração contra a fauna, respectivamente, sujeito a sanções penais e administrativas.
Iniciei esse texto com a afirmação que esse tema tem várias camadas, e uma delas, polêmica, nos leva a constatação que nem todo mundo tem condições de ter uma ave dessa em casa.
Não devemos objetificar o animal colocando-o como posse ou elitizando-o, como algo que só abastados podem ter, o caminho não é esse, trata-se mais de uma questão de prioridade, generosidade e empatia com a vida e bem-estar do outro.
E isso vale não só para criar e manter uma estrutura adequada a uma ave, e sim a qualquer pet, como cachorros e gatos.
Focando nas aves, antes de adquiri-las é preciso mensurar todas as questões que envolvem seu bem-estar, um local amplo, seguro (telado) que proporcione condição de voo, forrageamento e outros comportamentos naturais a espécie, assim como nutrição, proteção, saúde e estímulos sociais e cognitivos.
O que muda com essa nota técnica?
Em caso de fiscalização na sua casa, caso seja constatado que as penas das asas estão aparadas, você pode ser autuado no crime de maus tratos e todas as sanções legais devidas.
Lembrando também, que cada crime encontrado é tipificado separadamente, ou seja, se sua ave é ilegal e tem as asas aparadas, são dois crimes distintos.
Para muitos, pode parecer um retrocesso ou inclusão de dificuldades para a criação de aves pet, na verdade, trata-se do progresso na legislação e no respeito a vida.
Não é mais admissível criar para satisfazer o homem, ignorando o bem-estar e as necessidades do animal, a criação deve ser antes de tudo uma via de mão dupla, de troca, cuidado, respeito, onde a saúde e o bem-estar físico e emocional de ambos tenham o mesmo peso.